Revista MS

Promotor nega negligência de paciente transplantada: "Lutou até o fim" (vídeo)

Quando Cláudia Aparecida da Rocha Chaves assistiu ao vídeo feito por duas alunas de medicina que comentavam sobre a situação clínica da filha, o sentimento foi de indignação. Em especial, quando as estudantes afirmaram que Vitória Chaves da Silva, morta aos 26 anos após uma vida de tratamento e três transplantes de coração – caso único no Brasil –, teria sido negligente com o tratamento. A jovem morreu de insuficiência renal 11 dias após o compartilhamento das imagens.

Com o objetivo de garantir que a filha tomasse os remédios obrigatórios para pessoas submetidas a transplantes de órgãos, Cláudia chegou a encarar idas e voltas de 17 horas de viagem por trecho, dentro de um ônibus, entre Goiás e a capital paulista.

Por ser de uma família simples, Cláudia apelava para o Ministério Público de Goiás, na comarca de Luziânia, que garantia, por meio de requerimentos, a compra de remédios, assim como a viabilização dos deslocamentos interestaduais, hospedagem e alimentação durante os períodos nos quais Vitória permaneceu no Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da USP.

Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, o promotor de Justiça Julimar Alexandro da Silva, da 6ª Promotoria de Luziânia, afirmou que ajudou a viabilizar o tratamento da jovem, ressaltando que “nunca houve negligência”.

“Gostaria de ressaltar a luta da Cláudia em relação à filha. Tínhamos contato com ela há mais de 10 anos. De lá para cá, a Cláudia fez tudo o que podia, nunca vi uma mãe lutar tanto como ela lutou. Mesmo com muitas barreiras burocráticas, nunca largou a filha. A Vitória sempre ia à Promotoria com a Cláudia. A Vitória demonstrou grande garra para sobreviver, nunca deixou de tomar remédios. Não houve negligência nem da parte dela nem da mãe, pelo contrário.”

Houve casos emergenciais em que até um avião foi viabilizado, em parceria com o município, para transportar o medicamento, assim como levar Vitória para tratamento em São Paulo.

O caso de injúria

Vitória passou por três transplantes de coração e um de rim. O ineditismo das cirurgias foi comentado em um vídeo, como revelou o Metrópoles, por Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano.

Gabrielli afirmou no registro que a paciente “não tomou os remédios que deveria tomar” e Thaís comentou que “essa menina está achando que tem sete vidas”. Ambas são investigadas pela Polícia Civil por injúria, devido à postagem compartilhada.

Os comentários das estudantes abalaram a família de Vitória. Além de encarar milhares de quilômetros para garantir a continuidade do tratamento e, com isso, aumentar a sobrevida da filha, Cláudia encarava maratonas burocráticas para conseguir apoio governamental à filha.

“A Vitória era uma menina dedicada, tomava os remédios certinho, e veio a acontecer alguma coisa com os órgãos dela, questão do tempo da sobrevida do transplante, mas não por falta de cuidado de minha filha”, afirmou Cláudia, referindo-se à morte da filha.

O Metrópoles apurou que, ao menos desde 2016, a Promotoria de Luziânia instaurou procedimentos garantindo o custeio do tratamento da jovem. Ela tomava sete tipos de medicação.

Agressão e maus-tratos

Vitória era acompanhada no Incor desde 2004. A última internação começou em 26 de maio de 2023 e durou até o dia em que morreu, em 28 de fevereiro deste ano. Em 23 de agosto do ano passado, Vitória teria se envolvido em um conflito e, segundo a família, uma enfermeira a agrediu.

Em 9 de outubro, o promotor Julimar Alexandro da Silva encaminhou, em caráter de urgência, cópia de denúncia ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) e solicitou a apuração sobre a agressão física, além de “outras situações de maus-tratos”, durante o período em que ela permaneceu internada no Incor.

Os referidos maus-tratos mencionados pelo promotor no documento, como foi apurado pela reportagem, seriam gritos de algumas enfermeiras direcionados à paciente.

Na ocasião da agressão atribuída à profissional do Incor, a mãe de Vitória registrou um boletim de ocorrência on-line. “Mas, quando fui à delegacia para representar o caso, não quiseram formalizar o B.O., alegando que a Vitória era maior de idade e ela precisava fazer isso”, disse Cláudia.

A jovem, no entanto, estava internada e não tinha condições de se deslocar até a delegacia. “Aí me disseram que precisaria de uma procuração, mas o cartório cobrava um valor alto para ir até o hospital e a gente não tinha esse dinheiro.”

Entenda o caso

O caso envolvendo as estudantes de medicina veio à tona esta semana, após o vídeo postado por uma delas viralizar e chegar à família da paciente. Na gravação, apesar de não falarem o nome da jovem, as estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano mencionam os três transplantes cardíacos e indicam quando os procedimentos foram feitos — na infância, na adolescência e no início da maioridade, o que coincide com o quadro de Vitória.

A publicação, feita em 17 de fevereiro, foi visualizada por pouco mais de 212 mil pessoas. A repercussão do caso fez com que o vídeo fosse tirado do ar na terça-feira (8/4).

“Um transplante cardíaco já é burocrático, já é raro, tem a questão da fila de espera, da compatibilidade, mil questões envolvidas… Agora, uma pessoa passar por um transplante três vezes, isso é real e aconteceu aqui no Incor e essa paciente está internada aqui”, afirma Thaís no vídeo.

Na postagem, Thaís ainda comenta que ela e a colega iriam se encontrar com Vitória em seguida. “A gente vai subir lá em cima [sic] e tentar conversar com essa paciente transplantada por três vezes.”

Antes do encontro, Gabrielli dá detalhes dos procedimentos aos quais Vitória foi submetida. “A segunda vez ela transplantou e não tomou os remédios que deveria tomar, o corpo rejeitou [o órgão] e teve que transplantar de novo, por um erro dela [Vitória]. Agora ela transplantou de novo, [o corpo] aceitou, mas o rim não lidou bem com as medicações.” É nesse momento que Thaís afirma que a paciente “acha que tem sete vidas”.

Cláudia, mãe de Vitória, contestou as declarações das estudantes. “O que elas dizem é inverídico e temos provas de tudo, de que ela [Vitória] seguia o tratamento à risca”, diz.

Após o episódio, a mãe registrou um boletim de ocorrência e acionou o Ministério Público de São Paulo (MPSP).

Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o caso é investigado como injúria por meio de inquérito policial instaurado pelo 14º Distrito Policial (Pinheiros). “A mãe da vítima foi ouvida e as diligências seguem visando o devido esclarecimento dos fatos, bem como a responsabilização dos envolvidos”, informou a pasta.

O que dizem as estudantes

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As estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano se posicionaram sobre o caso na tarde dessa quarta-feira (9/4). Em uma nota de defesa, as estudantes afirmam que o conteúdo divulgado no TikTok “teve como única intenção expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio”.

As alunas disseram ainda que a raridade da situação despertou a “curiosidade acadêmica” e as fez refletir sobre aspectos técnicos inéditos, proporcionados pela condição clínica de Vitória.

Gabrielli e Thaís não tiveram acesso ao prontuário da paciente, segundo o comunicado. “Não sabíamos quem era.” Além disso, ambas reforçaram não terem divulgado qualquer imagem da paciente.

As estudantes negaram “qualquer deboche ou insensibilidade”. “Nosso compromisso com a vida, a dignidade humana e os princípios éticos da medicina permanece inabalável”, ressaltaram.

Por fim, Gabrielli e Thaís manifestaram solidariedade à família de Vitória e afirmaram que estão tomando providências para esclarecer o caso e preservar suas integridades pessoais, acadêmicas e emocionais.

O que dizem Incor e USP

Em nota encaminhada à reportagem, o Incor declarou que não divulga dados de pacientes. A instituição afirmou, ainda, repudiar “veementemente” atitudes que violem os princípios da ética e confidencialidade. O instituto acrescentou que apura “rigorosamente o caso mencionado”, ressaltando que “adotará todas as medidas cabíveis”.

Procurada, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) disse que as alunas atualmente não têm qualquer vínculo acadêmico com a universidade ou com o Incor. As estudantes estavam no hospital em função de um curso de extensão de curta duração (um mês). “Assim que foi tomado conhecimento do fato, as universidades de origem das estudantes foram notificadas para que possam tomar as providências cabíveis”, diz nota.

“Internamente, a USP está tomando medidas adicionais para reforçar junto aos participantes de cursos de extensão as orientações formais sobre conduta ética e uso responsável das redes sociais, além da assinatura de um termo de compromisso com os princípios de respeito aos pacientes e aos valores que regem a atuação da instituição”, completa o texto.