Revista MS

Ana (nome fictício) havia sido diagnosticada com câncer em estágio avançado quando descobriu que estava grávida. Contudo, o tratamento de quimioterapia, fundamental para a recuperação da paciente, não poderia ser feito durante gestação. Sob risco de morte diante do avanço do quadro, ela entrou com pedido de interrupção legal da gravidez no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que considerou a situação grave e emitiu parecer favorável.

Aos 29 anos, Ana lidava com um câncer avançando, enquanto tinha dois filhos pequenos para criar e lidava com uma nova gravidez. Até a data marcada para a interrupção da gestação, ela enfrentou dilemas internos, o jejum do pré-operatório e os exaustivos trâmites legais necessários ao aborto.

Em meio a esse cenário, ela se preparou para passar pelo procedimento no Hospital Regional de Taguatinga (HRT), com oito semanas e três dias de gravidez. No entanto, uma nova etapa tornou a situação mais crítica: a equipe médica se recusou a efetuar o procedimento, sob alegação de “objeção de consciência”.

A justificativa se baseia em um direito constitucional que garante a qualquer cidadão não precisar agir diante de situação que fira a própria crença religiosa ou convicção filosófica e política.

Esse direito, porém, esbarra em outro: o de Ana passar pelo aborto legal e dar sequência ao tratamento contra o câncer. Na prática, a gestante se viu dependente de uma decisão da equipe médica sobre qual vida valeria mais.

“Esse não é nem um dilema. A própria legislação brasileira estabelece [autorização para] o aborto em casos de risco de morte à mulher. A vida da gestante é prioridade nesse tipo de caso”, destaca o chefe do Núcleo de Assistência Jurídica de Defesa da Saúde e defensor público Márcio Del Fiore. “É preciso haver a substituição imediata [dos profissionais], para garantir o direito ao procedimento.”

A negativa ocorreu em 23 de agosto de 2024. Ana recorreu e, quatro dias depois, conseguiu passar pela interrupção gestacional prevista em lei. No entanto, enfrentou inúmeros constrangimentos para conseguir ser assistida.

O caso foi repassado à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), que encaminhou a denúncia à Secretaria de Saúde (SES-DF). “Só por negarem o direito há um constrangimento. A substituição [da equipe nesse caso] tem de ser imediata, porque, se a mulher morrer, o médico também pode responder por omissão de socorro”, continuou o defensor público.

No ofício enviado à SES-DF, a comissão da CLDF enfatizou que Ana se encontrada em condição de vulnerabilidade no momento da negativa: “[Ela passou por] diversos constrangimentos, sucessivos momentos de jejum pré-operatório e questionamentos que responsabilizavam a paciente em uma situação clínica e psicossocial extremamente vulnerável, acarretando impactos biopsicossociais significativos”.

A denúncia indagou, ainda, sobre o descumprimento da medida judicial e a “alegação infundada de objeção de consciência”. “É vedado à instituição se recusar a executar procedimentos que satisfaçam necessidades de saúde. Nesse sentido, questionamos quais providências a SES-DF prevê nessas situações, considerando que toda a equipe de anestesiologistas se recusou a atuar no caso”, cobrou o documento.

Objeção de consciência

A objeção de consciência é um tema que está em pauta no Congresso Nacional. Em julho deste ano, a deputada federal Sâmia Bomfim (PSol-SP) apresentou o Projeto de Lei nº 2.520/2024, para assegurar o aborto a grávidas mesmo em casos de objeção de consciência por médicos.

O texto prevê que o profissional só poderá deixar de interromper a gestação sob essa alegação quando houver outro médico para efetuar o procedimento. Vale lembrar que, no Brasil, o aborto não é criminalizado caso haja risco de morte da gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal.

Pela proposta em análise na Câmara dos Deputados, nos casos de aborto legal, o médico que invocar a objeção de consciência deverá informar a justificativa imediatamente à unidade de saúde e garantir a continuidade do atendimento da grávida com outro profissional qualificado que não se oponha ao procedimento, sem causar atrasos ou interrupções.

Atualmente, o projeto está parado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (Cmulher) da Casa. Acompanhe aqui a tramitação.

Mais de 190 abortos legais negados

Em quatro anos, a SES-DF recusou 191 pedidos de aborto legal. No mesmo período, a pasta recebeu 863 solicitações no âmbito do Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei (PIGL), que atende mulheres vítimas de violência sexual.

As negativas tiveram os seguintes motivos, segundo documento obtido via Lei de Acesso à Informação (LAI):

Gestação não confirmada ou perda espontânea;
Gestação de relação consentida ou incompatível com a data da violência;
Grávida não retornou;
Grávida decidiu seguir com a gestação;
Idade gestacional acima de 22 semanas;
Gravidez ectópica ou mola; e
Paciente de outro estado.
Recusa em casos de estupro

O Distrito Federal negou ao menos 22 pedidos de aborto legal sob o argumento de que o tempo da gravidez era superior a 22 semanas. No entanto, isso contraria a legislação brasileira, que não estabelece tempo máximo para o procedimento.

Essas gestações – todas decorrentes de violência sexual – não foram interrompidas, pois a SES-DF se baseou em uma norma técnica do Ministério da Saúde publicada em 2012. Assim, a interpretação do documento, que não tem força de lei, impediu o acesso ao aborto legal.

A reportagem questionou a SES-DF sobre o ofício enviado pela comissão da CLDF à pasta, o caso específico de Ana e a situação da paciente, mas a secretaria não enviou resposta até a mais recente atualização deste texto. O espaço segue aberto para eventuais manifestações.